Estratégias para conseguir autonomia

Rapaz com síndrome de Down sentado a uma mesa ao ar livre lê o jornal ao lado de uma jovem. Os dois sorriem.Palestra de Beatriz Garvía Peñuelas, da Fundación Catalana de Síndrome de Down, na Conferência da National Down Syndrome Congress (NDSC) em Denver, EUA, 2013.

O que é autonomia pessoal ? Os dicionários a definem como a capacidade da pessoa para executar por si só, sem ajuda ou supervisão de outros, atos cotidianos básicos de sobrevivência, como alimentar-se, fazer a higiene pessoal , vestir-se, operar equipamentos ou dispositivos simples, como celulares ou microondas, ir sozinho a lugares próximos, etc .

Muitas pessoas com síndrome de Down têm-se mostrado bastante autônomas, podendo ter acesso ao emprego e a uma vida independente com apoio. Mas nem todas as pessoas conseguem atingir esse objetivo. As diferentes conquistas dependem de muitas coisas: o conhecimento de si mesmo, de suas habilidades pessoais, ajustamento social, preparação para o trabalho, saúde física e mental e, acima de tudo, ter tido, desde a infância, uma vida baseada na responsabilidade e na aquisição de autonomia pessoal. É evidente que, para isso é necessário focar na capacidade e as pessoas com síndrome de Down têm muita capacidade. Para conduzirmos nossas próprias vidas, é fundamental que nós construamos a nossa própria identidade. Se a mensagem que recebemos é a de que não servimos para nada, dificilmente vamos vencer. Se a mensagem é que temos capacidade, possivelmente, conseguiremos desenvolvê-la ao máximo. Por isso, a representação mental da pessoa com síndrome de Down é crítica para seu desenvolvimento emocional. E como representamos mentalmente as pessoas com síndrome de Down?

Carlo e Enrico Montobbio Lepri, psicólogo e psiquiatra genovês foram pioneiros na integração de pessoas com síndrome de Down em várias empresas tradicionais. Eles dizem que no século XX , especialmente em seus primeiros 50 anos, a imagem da pessoa com deficiência é a da eterna criança que se deve proteger e cuidar. Nascem instituições de assistência para atender as necessidades do ponto de visto terapêutico, não normal.

O que acontece agora, no século XXI ? Bem, nós ainda não chegamos a considerar a pessoa com síndrome de Down como um adulto. E, embora esteja claro que estamos fazendo progressos, ainda se associa a síndrome de Down à imagem da eterna criança.

No entanto, a pessoa com síndrome de Down percebe exatamente o que o outro sente em relação a ela ou o que o outro pensa dela. O olhar dirigido à pessoa com deficiência tem o poder de prejudicar sua auto-estima e infantilizá-la ou, fazê-la se sentir capaz . Acho que todos concordamos que não está escrito em nenhum cromossomo que uma pessoa com síndrome de Down não possa tomar banho sozinha, fazer um sanduíche, atravessar a rua ou trabalhar. No entanto, muitas delas não chegam a conseguir essa autonomia. Por quê?

Porque nós as educamos com medo, as infantilizamos (” Essas crianças”) e as superprotegemos. Por que fazemos isso? Porque temos medo que, ao tomar banho sozinho, nosso filho se queime com a água, temos medo que, ao fazer um sanduíche, se corte com a faca, temos medo que atravesse a rua e seja atropelado por um carro – e aí a superproteção fala mais alto.  Não lhe permitimos fazer muitas coisas que poderiam fazer e que são necessárias para o seu desenvolvimento e crescimento pessoal. Isso pode ser mais nocivo do que a própria deficiência, pois cria uma dependência que impede que o indivíduo se constitua enquanto sujeito.

Enrico Montobbio disse que o que uma pessoa com deficiência precisa para crescer e se desenvolver são referências de normalidade. Se uma pessoa recebe estímulos normais, a resposta será normal. No entanto, “o papel social de determinados grupos de indivíduos geralmente é mais determinado por pertencerem a uma categoria (neste caso “deficientes”) do que pelas características individuais da pessoa. Assim, se um homem sem deficiência monta a cavalo, dizemos que está montando um cavalo. Se quem monta é uma pessoa com deficiência, dizemos que ele faz equoterapia; se uma pessoa sem deficiência faz artesanato, dizemos que faz artes manuais. Se alguém que tem uma deficiência faz, dizemos que é terapia ocupacional. O mesmo ocorre com a ginástica ou terapia psicomotora . Com isso, como é que você espera uma resposta adulta e normal para um tratamento médico ou terapêutico?

Fiquei muito impactada quando um homem com o síndrome de Down veio ao meu consultório porque tinha medo de espaços abertos. Ele tinha cerca de 38-40 anos, trabalhava em uma empresa familiar e tinha uma vida bastante independente, embora muito próxima do círculo familiar. Ele foi se consultar com o médico clínico, neurologista etc da Fundação (Fundação Catalã de Síndrome de Down, na Espanha), até que veio ao meu consultório. Ele estava acompanhado por sua mãe e passou algum tempo me explicando o que havia de errado a partir de perguntas que fiz para levantar o seu histórico médico. Depois disso ele disse: “Eu gosto de vir aos médicos da Fundação porque aqui eles perguntam a mim o que é que dói, e não a minha mãe.” Quantas vezes eu refleti sobre essa frase! Como anulamos as pessoas com deficiência ao nos referirmos a ela na sua frente, sem lhe dar oportunidade de que se expliquem, porque assumimos que elas não vão saber fazê-lo.

Alexandre Jollien, jovem filósofo com paralisia cerebral, fala sobre isso em seus livros, dando o exemplo de que quando vai a um restaurante, mesmo que ele esteja lendo o cardápio, o garçon sempre pergunta ao seu companheiro o que ele vai comer, assumindo que não pode se expressar, ou não sabe o que quer.

Quando falamos de pessoas com síndrome de Down nós as igualamos pela síndrome (temos até “perfis psicológicos ” de pessoas com síndrome de Down) e uma síndrome, de acordo com o dicionário, é um conjunto de sintomas ou sinais que identifica uma condição médica. Como uma pessoa constrói sua identidade, se é definido por uma síndrome? Como se imagina ou faz projetos para o futuro? Igualar pessoas com síndrome de Down pela síndrome as impede de descobrir suas capacidades, ver o que é próprio delas, o que herdaram de suas famílias – me pareço com meu pai nisso, com minha mãe naquilo – e também as impede de se constituir enquanto sujeito único que faz parte de uma sociedade plural, construir a sua identidade e fazer um projeto de futuro.

O nome desta conferência é “Estratégias para conseguir a autonomia”. E para conseguir a autonomia temos de desenvolver ao máximo as habilidades pessoais. A principal habilidade pessoal a ser desenvolvida é o auto-conhecimento: conhecer e aceitar os nossos pontos fortes e fracos e para isso é necessário construir a nossa identidade.

A construção da identidade é um fenômeno muito complexo, que começa no nascimento e que vai sendo estruturado através das próprias experiências e a partir da imagem que percebemos que os outros fazem de nós.

Um bebê é um projeto de ser humano que precisa se constituir enquanto sujeito; a criança cresce na relação com o outro, se vê como é visto e se identifica com a imagem que os outros têm dela. Esta primeira relação é que sustenta o seu EU. À medida que cresce, a criança pega a imagem que os demais têm dela e, juntamente com a percepção interna de si mesmo, molda sua identidade, conhecendo-se e reconhecendo-se. A criança imediatamente sabe se é inteligente, burra, simpática, sensível, tímida e constrói uma imagem de si mesmo que vai servir para enfrentar a vida, os relacionamentos, o trabalho, de uma forma ou de outra.

Quando o bebê tem síndrome de Down, no momento do nascimento o conceito de deficiência inclui a criança. E muitas das limitações das pessoas com síndrome de Down não são devidas apenas à ocorrência cromossômica, mas pode estar relacionada com a forma como ela é percebida em seu contexto familiar e social.

Atrás da síndrome de Down ou qualquer condição orgânica há uma criança que precisa das mesmas coisas que todas as crianças: que se brinque com ela, que se divirta com a brincadeira, que seja levado em conta, valorizado, porque essa criança está submetida aos mesmos princípios básicos que todos os seres humanos para sua constituição como sujeito.

A deficiência não significa impossibilidade de encontrarmos com um sujeito movido por seu próprio desejo. Pergunte à criança o que ela quer comer quando for a um restaurante, que roupa quer vestir ou qual é o seu brinquedo favorito. Pergunte se ela teve um bom dia na escola ou se quer convidar um amigo para ir em casa.

Todos sabemos que, para aprender, é preciso querer, estar motivado. Se não, por que algumas pessoas que tem síndrome de Down e possuem a mesma capacidade cognitiva aprendem a ler e escrever, e outras não? Uma deficiência por si só não deve justificar nenhum comportamento fora do normal, que a pessoa seja mal educada ou que seja tratada diferente do resto da população. Porque uma pessoa com deficiência, mesmo que tenha habilidades suficientes, se não for considerada capaz não poderá desenvolver suas capacidades, não poderá se tornar adulta. Portanto, vamos valorizar suas capacidades para que consiga se motivar e deseje crescer e aprender.

Outro conceito que não devemos perder de vista na hora de educar nossos filhos com síndrome de Down para a autonomia é a responsabilidade. Exigindo que a criança desde a infância tenha responsabilidades, dentro de suas possibilidades, ela saberá seguir, quando  chegar a hora, as regras do seu trabalho, e cumprir as suas responsabilidades. É muito importante dar responsabilidades às pessoas com SD desde pequenas.

A identidade adulta está intimamente ligada ao trabalho, pois a entrada no mercado de trabalho representa a entrada no mundo adulto. Este processo é difícil para todos e mais ainda para as pessoas com síndrome de Down. Para elas, como para todos, o trabalho, como atividade humana, significa uma forma de satisfazer as suas necessidades pessoais, econômicas e de relacionamento. O trabalho não é apenas “trabalhar”, mas “internalizar” o papel de trabalhador, de adulto, reconhecer o seu poder, assumir as responsabilidades e direitos envolvidos e, por meio desse papel, aceitar o dos outros, quer dizer, fazer parte da sociedade. E para visualizar melhor a estreita relação entre o trabalho e a identidade basta prestar atenção a questões cotidianas: onde você trabalha? Eu sou encanador, médico, fazendeiro, advogado … “Eu sou”. “No momento em que a comunidade não é capaz de dar um papel social a pessoas contextualmente frágeis, ela as rotula na categoria dos “sem função”, diz E. Montobbio. Freud diz que nada liga mais o indivíduo à realidade do que o trabalho que o incorpora a uma parte da realidade, à comunidade humana.

Por isso é muito importante educar nossos filhos com síndrome de Down na aquisição de responsabilidades e encorajá-los a alcançarem o máximo desenvolvimento de suas capacidades e competências pessoais já que as habilidades pessoais e profissionais são a chave para entrar no mundo do trabalho e no mundo adulto .

Os seres humanos, à medida que crescem física e psico-socialmente, adquirem muitas e variadas habilidades para enfrentar e superar situações rotineiras e extraordinárias na vida. A seguir listamos algumas dessas habilidades :

    Conhecer a si próprio.
    Desenvolver a criatividade, Todos nós temos a capacidade de criar. Incentivar a criatividade nas pessoas com síndrome de Down as beneficia em todos os aspectos do seu desenvolvimento

  • Gerenciar emoções. É muito importante se concentrar nas emoções. Algumas pessoas com síndrome de Down têm grande dificuldade para se comunicar e isso dificulta a expressão das emoções. Ajudá-las a identificar as emoções, a senti-las e expressá-las permite com que se sintam bem e melhora suas relações. Por outro lado, muitas vezes tentamos poupá-las de sofrer e não lhes informamos sobre coisas que acontecem, excluindo-as e afastando-as de sentimentos e emoções dolorosas na família. Refero-me a situações de luto, doença ou circunstâncias semelhantes.
  • Lidar com as tensões. Reconhecer que se tenha gerado uma tensão pode ser muito difícil para uma pessoa com síndrome de Down. É importante educar a este respeito para evitar situações estressantes e agressivas. Deve-se aprender a esperar, se controlar e expressar a tensão sem agressividade.
  • Estabelecer e manter relacionamentos interpessoais são habilidades pessoais fundamentais para grantir uma boa saúde mental e desenvolver autonomia e motivação. A dimensão relacional-afetiva em pessoas com síndrome de Down apresenta algumas questões que devem ser consideradas: a dificuldade de percepção e de raciocínio no desenvolvimento de relacionamentos afetivos, as mostras de afeto indiscriminado, dificuldades em expressar sentimentos, problemas para esperar e discernir entre realidade e fantasia e para controlar impulsos, dificuldade de tolerar frustrações ou decepções e falta de privacidade . Nos últimos anos têm sido comprovada a importância de uma ampla gama de atividades de lazer para as pessoas com síndrome de Down.
  • Empatia. Colocar-se no lugar do outro e entendê-lo é muito difícil para as pessoas com SD, não porque não possam fazê-lo, mas porque não são educados para isso. Se elas forem tratados como se fossem o centro do mundo, depois não conseguem sair desse lugar.
  • Solucionar problemas. Saber esperar, identificar o problema, pensar em possíveis soluções e não fingir que está resolvido, ajuda a pessoa com síndrome de Down a amadurecer e atingir um maior grau de autonomia.

A capacidade de solucionar problemas é fundamental para se sentir autônomo. Permitimos que nossos filhos tomem decisões? Tomar uma decisão depende de habilidades cognitivas e de aspectos éticos. Qual nosso código de ética ?

  • O pensamento de causa-efeito, ou seja, a compreensão de que as ações causam efeitos .
  • O pensamento alternativo: quais soluções eu tenho? O que posso fazer para mudar isso?
  • O pensamento de consequência : Quais são as consequências do meu ato?
  • O pensamento de perspectiva: Consigo colocar-me no lugar do outro?
  • O pensamento meio-fim: De que meios disponho para conseguir alguma coisa?

A pessoa com deficiência intelectual tem dificuldade em desenvolver essas maneiras de pensar, mas com apoio e educação pode vir a pensar por si própria e avaliar as consequências de suas ações diárias. Os pais e educadores devem se perguntar se é ético forçar e direcionar a vontade do outro, ao invés de dar subsídios para que possa dirigir sua vida tanto quanto possível e com o apoio necessário. É dever dos pais e educadores fornecer recursos para antecipar o que pode acontecer. As dificuldades de capacidade cognitiva e processos de pensamento produzidos pela deficiência intelectual não podem ser diminuídas, mas você pode ajudar a pessoa com deficiência a pensar sobre as conseqüências de suas ações, de dizer não, entender o que é certo e o que é errado. E para isso é preciso instruir com respeito e confiança.

Ensinar é transmitir regras, mas também permitir o crescimento. Para permitir o crescimento deve-se depositar confiança no outro, confiar em seus recursos, realizações e permitir que aprenda com suas frustrações. Ter um projeto de vida, um caminho com diferentes objetivos, é importante para crescer e não ficar preso à infância. Pessoas com síndrome de Down precisam, como o resto da população, de um projeto de vida e para isso precisa conhecer-se bem, aceitar suas limitações, conhecer seus pontos fortes e capacidades, ter confiança em si mesmo e ter metas concretas.

Do que foi exposto acima, conclui-se que o propósito do nosso trabalho educativo é que os nossos filhos com síndrome de Down se tornem adultos e se livrem da imagem de eterna criança, que deve ser protegida e cuidada.

É muito importante que as crianças com deficiência não sejam vistas com pena, medo ou como incapazes. É fundamental que aprendam a tolerar frustrações, que não sejam evitadas situações em que tenham que escolher ou tomar partido. Elas têm que aprender com as boas e más experiências, aprender a cometer erros, a suportar aquilo que não gosta e, ao mesmo tempo, devem ter a possibilidade de gerenciar pequenas coisas que dizem respeito a sua vida. Se não facilitarmos essa base, não lhes estaremos ajudando a se tornarem adultos.

Ser adulto não significa ser inteligente ou independente, casar e ter filhos. Ser adulto significa viver de forma consciente e responsável e ter acesso a alguns dos papéis previstos na sociedade. Se não preparamos esta base, “colocar” uma pessoa com deficiência num contexto adulto como o do mundo do trabalho pode representar um grande risco.

Como profissionais e como pais devemos fazer todo o possível, tudo que esteja ao nosso alcance para que as pessoas com deficiência tenham um projeto de vida. Nosso desafio será reconhecer e respeitar o seu tempo de crescimento e saber aceitar a condição de adulto, em vez de uma infância eterna. Se acreditarmos que as pessoas com deficiência têm possibilidade de crescer e tornar-se parte ativa da sociedade, com certeza elas serão capazes de corresponder a essa expectativa. Se não temos um projeto de futuro para elas, crescerão sem esperança, sem valorizar suas próprias realizações e seguirão na posição de crianças que mantém há muitos anos.

Termino com uma citação do pensador Michel Quoist:

Se o homem tem medo de andar, que não solte a mão da mãe. Se tem medo de cair, que fique sentado. Se tem medo do acidente, que deixe o carro na garagem.

Se tem medo de escalar, que fique no abrigo. Se tem medo de que o pára-quedas não abra, que não salte. Se tem medo da tempestade, que não saia do porto. Se tem medo de não saber construir sua casa, que a deixe no projeto. Se tem medo de confundir o caminho, que fique em casa. Se tem medo de se sacrificar e do futuro, que renuncie à vida, se tranque e se deixe levar pela preguiça.

Então, talvez, sobreviverá, mas não será mais um homem, já que a natureza do ser humano é querer arriscar, de maneira razoável, sua vida.

Tradução e adaptação – Patricia Almeida

Fonte  – http://blogenespanol.ndsccenter.org/estrategias-para-conseguir-autonomia/