Casal de atores com síndrome de Down sonha com Oscar e diz: “Somos subestimados”

Protagonistas do filme “Colegas”, premiado em Gramado, Ariel Golbenberg e Rita Pokk falam da paixão pela profissão, de preconceito e do projeto de virarem também diretores.

“Para ser ator é preciso dar o sangue.” A frase parece ter saído da boca de um profissional experiente, e é mesmo. Ariel Goldenberg, 31 anos, é um dos protagonistas de “Colegas” , filme ganhador do último Festival de Gramado . A vitória na serra gaúcha, divulgada pela equipe como se fosse o “Oscar brasileiro”, provocou burburinho na internet. Não só pela qualidade do longa, mas pelo fato de ele ser estrelado por atores com síndrome de Down.

Ariel encabeça “Colegas” ao lado da mulher, Rita Pokk, 32 anos, e do carioca Breno Viola, os três têm síndrome de Down. Na trama escrita pelo diretor Marcelo Galvão, o trio, viciado em cinema, foge do instituto onde morava depois de assistir a “Thelma e Louise” e cai na estrada a bordo do Karmann Ghia vermelho do jardineiro, interpretado por Lima Duarte, também o narrador.

Deixando um rastro de crimes e procurados pela polícia (tudo na maior inocência possível), cada um tem o compromisso de realizar um sonho – casar, voar, ver o mar. Por trás dessa história de visual encantador e repleta de referências cinematográficas, há o objetivo nada cifrado de acabar com o preconceito.

Se na ficção os protagonistas viviam segregados, na vida real não poderia ser mais diferente. Prestes a completar nove anos juntos, Rita e Ariel (ou Ari, seu apelido) moram num apartamento amplo no bairro do Sumaré, em São Paulo, na companhia de Corine, mãe de Ariel. Cercados por filmes e obras de arte, trabalham meio período – ela numa rede de drogarias, ele como auxiliar de escritório –, mas querem mesmo é se afirmar como atores.

Os dois atuaram pela primeira vez juntos numa versão teatral de “Romeu e Julieta”. Ariel conseguiu papéis na novela “Jamais Te Esquecerei” (2003), do SBT (na qual Rita faz uma participação), e num episódio da série global “Carga Pesada”. Depois, já casados, ficaram conhecidos nacionalmente ao participar do documentário “Do Luto à Luta” (2005), de Evaldo Mocarzel, vencedor de seis prêmios no Festival do Recife. Nas entrevistas para divulgar o filme, cruzaram com Marcelo Galvão, que também ia conversar com a jornalista Marília Gabriela, e daí nasceu a parceria para “Colegas”.

Por quatro anos, o casal ensaiou todos as semanas com o diretor. A prévia foi o aquecimento para as filmagens, realizadas ao longo de três meses em Paulínia, São Paulo, Torres (litoral gaúcho) e Buenos Aires. A dupla descarta qualquer privilégio em relação ao resto da equipe. “Não é fácil acordar de madrugada para poder gravar”, garante Ariel ao iG . “Tiveram cenas com uns horários bem loucos. E nas de chuva, a água era gelada pra caramba.”

Dificuldades assim não impediram os dois de sonhar alto. “Quero ser famosa, conhecida no mundo inteiro, dar várias entrevistas”, conta Rita, que fez curso de interpretação na Associação para o Desenvolvimento Integral do Down (ADID).

Ela sentiu um pouco do gostinho da fama na serra gaúcha, ao ser assediada pelo público nas ruas de Gramado. “Eu conversava com meus fãs, tirava fotos, contava a história do filme, quem era Marcelo Galvão, um monte de coisa.”

Já Ariel quer oficializar a profissão fazendo seu registro profissional de ator (“já tenho até currículo pronto”) e voltar a trabalhar na TV.

“Eu gostaria muito de trabalhar em novela”, diz ele, “não em uma, várias”. Rita, por outro lado, prefere ficar mais focada: “Por enquanto só quero atuar no cinema. Depois, mais tarde, vou ver o que quero fazer”. “Atriz tem que aceitar tudo”, rebate Ariel, engatando uma discussão que se estende por vários minutos.

Preconceito e inclusão

Há poucos dias, a produtora Gatacine, responsável por “Colegas”, abriu uma campanha na internet para arrecadar recursos para auxiliar o lançamento do filme, previsto para entrar em cartaz no dia 9 de novembro. Ariel é o garoto-propaganda, e ele não desperdiça nenhuma oportunidade de divulgar o projeto. “Queria que as empresas dessem mais patrocínio para a gente. O tema de ‘Colegas’ é o preconceito”, defende.

E os dois atores já foram alvo de preconceito? “Já sentimos bastante. As pessoas olham diferente para a gente”, lamenta Rita. “Acham que Down é mongol, que não sabe falar direito, ficam nos subestimando”, acrescenta Ariel, que condena qualquer tipo de preconceito, racial, religioso, o que for. “Queria que você colocasse isso na reportagem: perante os olhos da sociedade, somos Down, mas aos olhos de Deus, somos normais.”

E não são só as pessoas com síndrome de Down que “Colegas” pretende ajudar. A sessão no Festival de Gramado contou com o recurso da audiodescrição, permitindo que cerca de 30 deficientes visuais pudessem acompanhar as aventuras do filme por meio de fones de ouvido.

Antigo parceiro de Hector Babenco, com quem trabalhou em longas como “Pixote”, “O Beijo da Mulher Aranha” e “Brincando nos Campos do Senhor”, o produtor Marçal de Souza – que perdeu a visão em 2007, por conta de diabetes – diz que está tentando viabilizar a facilidade para alguns cinemas quando “Colegas” estrear. Além disso, negocia com a distribuidora a inclusão de legendas em parte das cópias, para beneficiar, desta vez, os surdos. Em Gramado, um grupo compareceu à sessão usando camisetas que diziam “Para quem não ouve, mas se emociona. Legenda para nós”.

Essa “corrente do bem” tem gerado um interesse crescente por “Colegas”. “O filme tem esse poder. Todo mundo quer assistir, recebemos milhões de e-mails”, comenta Marçal.

“O que falta é o público voltar ao cinema. É uma judiação quando o filme é visto só por 20 mil, 30 mil pessoas. Tem muita gente querendo saber quando o filme vai ser lançado em DVD, para esperar e ver no sofá. Não se dão conta de que o cinema evoluiu muito tecnicamente, se perde muito em casa, no som, na imagem.”

Rumo ao Oscar

Quando participaram de “Do Luto à Luta”, Ariel e Rita foram convidados por Evaldo Mocarzel para experimentar dirigir algumas cenas de um curta fictício (assista aqui). Os dois gostaram tanto que hoje, além de serem atores, sonham em pular também para trás das câmeras. Eles, inclusive, já trabalham na história.

O casal é fanático por filmes de horror. No quarto, a prateleira é repleta de DVDs do gênero – estão lá “O Silêncio dos Inocentes”, “O Exorcista”, “Brinquedo Assassino”, Poltergeist” e por aí vai. Ariel tem na ponta da língua uma das falas do maníaco Hannibal Lecter, interpretado por Anthony Hopkins e citado em “Colegas”. “Comi o fígado dele com caldo de feijão e um bom chianti”, recita o ator, imitando inclusive a célebre salivação do assassino em série.

“Estou escrevendo o roteiro do meu filme, junto com o storyboard”, conta Ariel, sem revelar detalhes. “Minha história é diferente da dele. Tem suspense, terror, tudo junto”, arremata Rita.

Imersa nessa realidade, a dupla pensa grande. Para encerrar com chave de ouro a carreira de “Colegas”, depois da estreia, os dois querem trazer um Oscar inédito para o Brasil. Indagado se gosta de assistir a premiação da Academia de Hollywood, a maior festa do cinema mundial, Ariel logo mostra que não está para brincadeira: “Eu quero ganhar o Oscar, é diferente”.

Séria, a meta rendeu uma página no Facebook e no Twitter , que Rita, ansiosa por ver Brendan Fraser e Stephen King em pessoa, ajuda a atualizar. Enquanto pratica a pose com os Kikitos conquistados em Gramado, o casal pensa positivo. “Se Deus quiser, a gente vai levar o Oscar para casa, para provar do que somos capazes”, torce Rita. “Vamos chegar aqui e gritar: ‘ganhamos o Oscar!!!'”. Ninguém duvida.

Fonte: IG

Crédito da Foto: Amana Salles/Fotoarena