Confira dicas para a retirada da fralda de crianças com síndrome de Down

Crédito da imagem: Ethan John/Flickr

A retirada da fralda não é tarefa fácil e requer, acima de tudo, muita paciência e persistência. No entanto, é uma etapa muito importante na vida de uma criança, tenha ela a síndrome de Down ou não. Deixar de usar a fralda é um grande passo no desenvolvimento e algo indispensável para a construção de uma vida independente.

Assim como qualquer criança, aquelas que têm síndrome de Down podem levar um pouco mais de tempo para deixar as fraldas, mas tem total capacidade para dar esse passo. Muitos pais acreditam que a dificuldade de falar pode impedir o desfraldamento, mas existem outras formas de comunicação que podem e devem ser usadas neste e em todos os momentos da vida da criança.

Para o urologista pediátrico Domingos Bica, criador do Serviço de Urologia Pediátrica do Instituto de Puericultura Pediatria Martagão Gesteira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro as crianças com síndrome de Down muitas vezes são subestimadas pelos próprios pais.

“O que a gente percebe é que os pais que são estimuladores e acreditam na capacidade dos filhos fazem toda a diferença. O desfraldamento pode ser um processo delicado, pois a criança vai urinar ou defecar fora do banheiro até aprender a usar o vaso sanitário. É uma situação desconfortável, mas os pais precisam enfrentar o problema”, afirma.

Incentivo na medida certa

De acordo com o especialista, a criança sem deficiência desenvolve mecanismos motores e neurológicos que possibilitam a retirada das fraldas diurnas por volta de dois anos de idade e noturnas até os cinco anos. No caso da criança com síndrome de Down, o processo pode ser mais demorado e variar de acordo com o desenvolvimento cognitivo e a estimulação. “A criança pode não ter mecanismos para se sentir incomodada por ter urinado na roupa, por exemplo”. Estratégias como a adoção de rotinas (levar a criança ao banheiro regularmente) e a imposição de limites costumam trazer bons resultados.

Entretanto, Bica faz uma ressalva importante: pressionar a criança para acelerar o desfralde antes da hora pode trazer problemas futuros. “Vejo pais querendo tirar as fraldas dos filhos muito pequenos, com um aninho, e isso nem sempre é uma coisa boa”, alerta. “O controle muito precoce obriga a criança a utilizar um mecanismo primitivo para controlar o esfíncter, ela aprende errado. Por isso, pode acabar desenvolvendo uma bexiga neurogênica (problema  que leva a bexiga a se tornar incapaz de contrair, não esvaziando adequadamente (hipoativa) ou ao esvaziamento constante por contrações incontroláveis (hiperativa)”.

Atenção à constipação

O especialista também afirma que a criança com síndrome de Down pode apresentar distúrbios de micção com frequência maior do que as demais. Por isso, é importante que ela seja avaliada por um pediatra e, caso necessário, encaminhada a um especialista para avaliar se é necessário adotar um tratamento com medicamentos ou outras estratégias para possibilitar o controle do esfíncter.

Outra questão fundamental é avaliar se a criança apresenta constipação, problema que aparece com maior frequência entre pessoas com síndrome de Down. “A criança constipada só vai sentir as fezes quando a ampola retal está muito estendida. Como as duas vias correm em paralelo, a bexiga fica imprensada. Isso também contribui para que ela não tenha a percepção de que está com a bexiga cheia”, explica. Para saber mais sobre os alimentos que evitam a constipação, confira o especial sobre alimentação do nosso portal.

Para a profissional de enfermagem especializada em uroterapia Maria José Felizardo, o primeiro passo deve ser dado após os pais observarem os intervalos em que a criança faz xixi. “Se a criança urina com intervalos menores do que duas horas, não pode começar. Outra questão é garantir que a criança se sinta segura quando estiver sentada com os pés apoiados”, esclarece.

Quando a criança já está na escola, o apoio de professores e outros profissionais que fazem parte de sua rotina é fundamental. Os pais também devem ter disciplina e planejamento para evitar que a criança volte a usar as fraldas após o início do desfralde.

Após deixar de usar as fraldas durante o dia, a criança pode começar a ser preparada para dormir sem fraldas. Os pais devem evitar dar líquidos duas horas antes da hora de dormir e levá-la ao banheiro antes de ir para a cama, mesmo que ela não demonstre vontade. Os “acidentes” noturnos possivelmente vão acontecer muitas vezes até que a criança aprenda a controlar suas necessidades fisiológicas e ir ao banheiro quando for necessário. Para evitar prejuízos, uma boa dica é utilizar um protetor impermeável de colchão ou outro material alternativo, como um pedaço de plástico ou de tecido para cortinas blecaute com um prendedor de colchão. Outra opção é procurar um tapete higiênico para cães em pet shops – ele parece uma fralda de bebê aberta sem elástico – e prendê-lo debaixo do lençol que forra o colchão.

Depoimento
No texto abaixo, Maria Antônia Goulart, coordenadora do Movimento Down, fala sobre o desfraldamento da filha Beatriz, que começou quando ela completou dois anos e falava poucas palavras. As dificuldades de fala não impediram o processo, que  durou 12 meses e trouxe ótimos resultados.

Começamos a tirar a fralda da nossa filha Beatriz quando ela completou dois anos. Muitos colegas de turma da escola já estavam começando o desfralde e achamos importante que ela vivenciasse esta experiência junto com os demais. Lutamos sempre contra sentimentos que costumam surgir nestes momentos nos levando a pensar que Beatriz não conseguirá fazer as coisas junto com os amigos da mesma idade. Por isto, começar o processo junto com a turma foi muito importante.
Passa a mensagem de que é possível oferecer às crianças com síndrome de Down as mesmas experiências que oferecemos às crianças comuns, aguardando que elas nos deem os limites em vez de já decidir que elas não conseguirão, deixando para depois. Além disto, tirar a fralda junto com os colegas de sala é muito legal porque ver os amigos usando o vaso sanitário é mais um incentivo.

A primeira orientação que recebemos da terapeuta ocupacional é que só se deve iniciar o desfralde quando a criança já estiver andando há alguns meses. É que andar trabalha a musculatura da região pélvica, fazendo com que ela comece a exercitar o controle do esfíncter.  Além disto, a postura correta para sentar no vaso sanitário é com a coluna reta; a coluna curvada trava o esfíncter, dificultando as saída do xixi.

Outra dica importante que seguimos à risca é a de que uma vez iniciado a processo, as fraldas devem ser banidas! Toda aprendizagem se dá pela repetição. A criança repete cada ação várias vezes esperando para ver se a reação será a mesma ou se será diferente.

Se num determinado dia ela deve usar o vaso sanitário e no outro ela usa a fralda, a criança passa a ter dificuldade de entender qual é o comportamento que se espera dela. Como pode ser tão importante usar o vaso sanitário se ela não o faz todas as vezes? Conversei com várias mães que mantiveram a fralda para ir a festas ou andar de carro, receosas dos efeitos das escapadas de xixi, e nestes casos o desfralde foi muito mais demorado.

Uma vez iniciado o processo, Beatriz só usava fralda para dormir. Durante o dia, seja qual fosse a programação, ela usava calcinha. Mas não pensem que esta decisão é fácil. Foi preciso conversar e pedir apoio a todos que convivem com Beatriz. Na escola, houve dias em que Beatriz trocou de roupa quatro vezes, o que significa que todos os xixis foram na roupa. Meu carro também foi batizado e, é claro, os colos meu, do pai, das avós, da dinda e da babá!

Sempre colocamos Beatriz no vaso sanitário antes de sair de casa, mesmo que ela não demonstre que deseja fazer xixi. Mas sempre perguntamos a ela antes e explicamos que mesmo quando a pessoa não está com vontade, deve tentar fazer xixi antes de sair. Algumas vezes ela fazia, mas em outros casos ela não fazia no vaso sanitário e cinco minutos depois escapava na roupa. É normal que o xixi escape neste início e devemos estar preparados para lidar com isto. Fomos desenvolvendo algumas estratégias que acho interessantes compartilhar:

Antes de começar o desfralde

– Falamos muito sofre as fraldas e as calcinhas. Mostramos para ela como as calcinhas eram lindas. Vestimos nas bonecas e depois nela. Colocamos nas bonecas bebês as fraldas e nas bonecas maiores as calcinhas, mostrando a ela que as fraldas só eram usadas pelos bebês que ainda mamavam e dormiam no berço. Já as bonecas que andavam, brincavam e dormiam em camas usavam calcinhas. E aproveitávamos para fazer o paralelo com a situação dela, mostrando que Beatriz já era uma menina que dormia na cama e fazia muitas outras coisas que os bebês não fazem mais. Compramos uma boneca que faz xixi na privada e brincamos exaustivamente com ela, repetindo o mesmo ritual que fazíamos com Beatriz quando íamos ao banheiro. Isto permitiu que ela exercitasse com a boneca as ações que em breve ela realizaria.

– Levamos Beatriz para nos ver fazer xixi durante vários dias. Sempre falava com ela “mamãe está com vontade de fazer xixi” fazendo gestos e exagerando bastante. Então, chamava Beatriz para me acompanhar até o banheiro dizendo “vamos logo porque se demorar muito o xixi escapa”. No banheiro, ia explicando a ela cada ação como “abaixar o short”, “abaixar a calcinha” e “fazer xixi”. Quando ouvíamos o som do xixi caindo na água, aplaudíamos muito felizes e dávamos vivas. Apos o xixi, continuava a explicar a ela que era preciso “pegar um pedaço de papel para secar”, “dar tchau para o xixi” e “dar a descarga para o xixi ir embora”. Depois, “lavar as mãos”. Quando ela começou a fazer xixi na privada, ela ficou muito feliz e aplaudia muito (aliás, aplaude até hoje!).

Compramos livros sobre o uso do penico e do vaso sanitário. Um livro que fez muito sucesso é o “o que tem dentro da sua fralda”. São vários filhotes de animais com fraldas que abrem e você vê o cocô do animal. Ao final do livro, a fralda do ratinho é aberta e está vazia. O ratinho, então, mostra o cocô dele dentro do penico. Este livro foi utilizado toda vez que Beatriz ia ao banheiro e sempre criávamos muita expectativa sobre como o cocô dela seria, parecido com o de qual dos bichos do livro.

– Brincamos muito no Ipad com o aplicativo “Pepi Bath”, ajudando a Pepi a fazer força para fazer xixi e cocô na privada, a se limpar e a dar descarga. Ao final, Pepi recebe uma salva de palmas.

– Começamos a fazer uma contagem regressiva para o fim das fraldas. Assim, ela foi se preparando para o dia que estava por chegar. Isto permite que a criança vá lidando com o sentimento de ansiedade com o novo que está por vir.

Após o início do desfralde

– Tiramos uma foto da Beatriz no vaso sanitário e encapamos com papel contact transparente. Sempre que perguntamos se ela quer fazer xixi ou cocô mostramos a foto e vamos até o banheiro levando a foto conosco. No banheiro, mostramos que a foto foi tirada ali, que é uma foto dela no vaso sanitário e que sempre que ela quiser ir ao banheiro deve nos mostrar a foto ou fazer um gesto.

– Andamos sempre com uma bolsa cheia de roupas e calcinhas para estar preparados para quando o xixi escapa. Na mochila da escola vão sempre quatro mudas de roupas e uma sandália porque às vezes quando o xixi escapa molha o tênis. 

– A cada trinta minutos levamos Beatriz ao banheiro, mesmo que ela não demonstre querer. Mas sempre perguntamos antes e explicamos que mesmo sem vontade é bom tentar fazer logo para não deixar a vontade ficar muito grande e o xixi escapar.

– Compramos um assento portátil que levamos para todos os lugares . Ao chegar à casa de amigos ou em locais públicos, sempre mostramos que o local também tem banheiro e levamos o assento portátil para facilitar a adaptação ao novo ambiente e evitar contaminação, no caso de banheiro público.

– Sempre que o xixi escapa, explicamos para ela que é preciso avisar quando quiser fazer e que o local certo é a privada. Mas não fazemos muito alarde para que ela não utilize isto quando quiser chamar a atenção ou nos deixar bravos.

Elogiamos sempre quando ela utiliza o banheiro, reforçando que ela é linda, que está crescendo e faz xixi no lugar certo igual à mamãe, ao papai e os outros adultos da casa e da família.

Confesso que em alguns momentos pensamos em desistir e deixar para tirar mais tarde. Mas hoje sabemos que a persistência foi um acerto.