Diversidade e Cultura: uma escola sem exclusões

Prof. Dr. Miguel Lopez Melero – Universidade de Málaga – Espanha

Deliberações Iniciais

Quando fui convidado a participar do “Creating a Border Pedagogy”, relacionado com a cultura da diversidade na escola, pensei que seria uma boa ocasião para escrever algo breve sobre a importância da educação intercultural hoje em dia. Por isso, o objetivo deste texto não é fazer uma análise profunda de como se vive a cultura da diversidade em nossas escolas, mas sim é uma boa explicação daquilo que eu entendo por uma educação em e para a diversidade cognitiva, étnica, cultural etc., tentando superar o mal entendido que existe no pensamento dos profissionais que consideram o programa de integração escolar como uma reforma da educação especial e não da educação geral.
Me ocorre que uma maneira de começar este escrito seja recordando como os objetivos tradicionais na educação de pessoas com necessidades educativas específicas, que se orientavam freqüentemente por conseguir alcançar comportamentos sociais controlados, mudaram. Hoje se pretende que essas pessoas adquiram cultura suficiente para que possam conduzir sua própria vida. Passou-se de um modelo assistencial e dependente para outro, competencial e autônomo.
No entanto, isso que parece claro a partir de um ponto de vista teórico, não está inculcado no pensamento pedagógico dos profissionais, e eles seguem aceitando, de um modo quase unânime, que as crianças com necessidades educativas específicas são os únicos responsáveis (culpados) por seus problemas de aprendizagem (às vezes esse sentimento se estende aos pais), mas raras vezes questionam o sistema escolar e a sociedade. Ao assumir que o fracasso na aprendizagem deve-se às próprias crianças com deficiência e não ao sistema, pensa-se que são eles e não a escola quem tem que mudar. E, ao não se conseguir a mudança, começa-se a selecionar dentro da própria escola, oferecendo dois tipos de currículo: um da cultura “formalmente selecionada pelo sistema” e outro da subcultura – determinada pelo mesmo sistema.
O modelo “pseudoeducativo” que sustenta essa escola seletiva é meramente assistencial. É um modelo que ressalta a deficiência nas pessoas como única causa dos seus problemas cognitivos e de aprendizagem, tudo isso apoiado médica e psicologicamente, mas que nunca busca uma possível causa no contexto (no sistema). O modelo de intervenção é, portanto, individualizado e o currículo truncado pelas não-competências, incidindo nas incapacidades e não nas possibilidades dos alunos.
É um modelo “privativo” e determinista (negativo), que destaca mais o que a criança não sabe fazer do que aquilo que ela pode realmente fazer. Outras vezes, esse modelo se centra na necessidade do especialista, e se busca um modo específico (tecnocrata) de intervir, como se a resolução dos problemas da diversidade estivesse sujeita à formação de especialistas. E os profissionais se fazem profissionais da deficiência. Por último, esse modelo deficitário centrou-se no Currículo Paralelo (Programas de Desenvolvimento Individual – PDI), ou Adequações Curriculares Individuais, como se se tratasse de uma atitude compensatória (modelo compensatório).
Essa escola seletiva valoriza mais a capacidade dos que os processos; os agrupamentos homogêneos do que os heterogêneos; a competitividade do que a cooperação; o individualismo do que a aprendizagem solidária; os modelos fechados, rígidos e inflexíveis do que os projetos educativos abertos, compreensivos e transformadores; apóia-se em desenvolver habilidades e destrezas e não conteúdos culturais e vivenciais como instrumentos para adquirir e desenvolver estratégias que lhes permitam resolver os problemas da vida cotidiana.
Essa é uma escola avaliadora de resultados e não de processos, sobre um critério supostamente objetivo. Dentro dessa escola seletiva se estabelecem “adaptações curriculares” para recuperar os alunos excluídos através de “aulas de recuperação”, e se aconselha aos pais que procurem especialistas (fonoaudiólogos, psicólogos), esquecendo intencionalmente que a responsabilidade é absolutamente coletiva e institucional.

Em nossa maneira de ver, manter esse discurso é um problema ideológico, por que o que se esconde atrás dessa atitude é a não-aceitação da diversidade como valor humano e a perpetuação das diferenças entre os alunos, ressaltando que essas diferenças são insuperáveis (determinismo bio e sociológico) e, mesmo que dividam o mesmo ônibus, a mesma mesa e a mesma cadeira, seguem currículos diferentes e, às vezes, até opostos.
Frente a este Modelo Deficitário (definido como específico, privativo e compensador, centrado na deficiência da criança), o Modelo Educativo Competencial pretende, em primeiro lugar, estabelecer ligações cognitivas entre os alunos e o currículo, para que adquiram e desenvolvam estratégias que lhes permitam resolver problemas da vida cotidiana e que lhes preparem para aproveitar as oportunidades que a vida lhes ofereça. Às vezes, essas oportunidades lhes serão dadas mas, na maioria das vezes, terão que ser construídas e, nessa construção, as pessoas com deficiência têm que participar ativamente. Definimos esse modelo como educativo-competencial ou de currículo único – ou seja, um modelo que evite a subcultura.

Esta incompreensão da cultura da diversidade, no meu ponto de vista, implica – como já disse mais acima – em que os profissionais pensem que os processos de integração estavam destinados a melhorar a “educação especial” e não a educação em geral. Tudo isso originou profundas diferenças tanto na conceitualização quanto no que significa a educação integradora e nas funções que esta há de desempenhar para a mudança dos parâmetros nos quais a educação segregadora se fundamentava, o que provocou grandes conflitos entre investigadores e legisladores, entre professores e pais. Ou seja, o problema que hoje detectamos na escola é um problema epistemológico e ideológico, que pode ser resolvido se todos estivermos convencidos de que a escola do século XXI deve ser uma escola sem exclusões.
No sentido gramsciano do termo, encontramo-nos em um momento de crise, por que os velhos parâmetros estão agonizando e os novos ainda não terminaram de emergir. Penso que a cultura da diversidade está colocando contra a parede o fim de uma época (o ocaso da modernidade?) educativa.
Ao ressaltar a importância da diversidade como referencial para a construção da nova escola, posso ser interpretado por alguns como ingênuo ou romântico, por pensarem que esqueço de fatores mais complexos que estão imersos, tais como o poder do estado em uma educação determinada, a força da economia neoliberal etc. No entanto, em um projeto de sociedade e de homem diferentes para o século XXI, nós, como profissionais do ensino, temos que ir construindo a escola do século XXI. Uma escola que ensine a pensar e a descobrir a cultura. Uma escola que faça homens pensantes e sensíveis às diferenças e não meros administradores.
A cultura da diversidade vai nos permitir construir uma escola de qualidade, uma didática de qualidade e profissionais de qualidade. Todos teremos de aprender a “ensinar a aprender”. A cultura da diversidade é um processo de aprendizagem permanente, onde TODOS(AS) devemos aprender a compartilhar novos significados e novos comportamentos de relações entre as pessoas. A cultura da diversidade é uma nova maneira de educar(se) que parte do respeito à diversidade como valor.
1. A escola da diversidade: uma escola que educa ou que seleciona?

Alguns de nós pensam que o melhor seria prescindir desse conceito de integração, e que falássemos de educação intercultural como um princípio mais global, que fizesse referência à necessidade de melhorar e elevar o modelo de educação (geral) que oferecem as escolas dos países desenvolvidos do Ocidente europeu. Preferimos não falar de integração porque ela é entendida como um programa que só tende a melhorar a Educação Especial mas não a Educação Geral, como eu afirmei antes.

O conceito de diversidade (ou de educação intercultural) não se refere somente à deficiência, mas a todos os coletivos menos favorecidos da sociedade que, por uma ou outra causa, estão situados na fronteira ou fora do sistema (raça, gênero, religião, sexo…), esquecendo-se (intencionalmente) que a diversidade é o mais genuinamente natural do ser humano.
Falar autoritariamente da Educação Intercultural é algo impossível, tanto em âmbito nacional, autônomo ou local. Por isso, vou dar a minha visão pessoal, que reflete os meus pontos de vista e que não tem que coincidir nem com o que vocês pensam nem com o que pensam as autoridades educativas. Não posso nem vou ser dogmático, mas sim completamente radical (buscando a raiz do assunto).
O fato de falar de Educação Intercultural e não de integração não é um capricho pessoal, mas algo que faço por que, a meu ver, introduz um novo discurso sobre qual deve ser a Educação Geral e como a escola deve oferecer as mesmas oportunidades de desenvolvimento da competência cognitiva, afetiva e cultural a todas as crianças, permitindo-lhes a autonomia intelectual, moral e social para levar uma vida de qualidade, de ter uma vida digna como pessoa. “Uma escola que queira realmente ser uma escola de todos e para todos, deve preocupar-se a oferecer a todos as bases, as motivações, os modelos culturais imprescindíveis para que se construa um patrimônio de conhecimentos, habilidades e competências.” (Tonucci,F. 1993, p-7)
A Educação Intercultural vai permitir a mudança dos modelos e dos mundos de significados considerados como normais (comuns). Ou, dito de outra forma, a presença de pessoas consideradas por alguma razão como diferentes no meio social tem que abrir espaços de reflexão nos contextos familiar, escolar e social. E, a partir desses espaços de reflexão, encontrar respostas sem partir das pessoas com necessidades educativas específicas. O significativamente importante não é que as culturas minoritárias adotem ou imitem os modelos relação, de convivência ou de educação das culturas majoritárias, mas que estas (as culturas majoritárias) têm que mudar os seus modelos, por que os parâmetros nos quais se sustentam não cobrem as necessidades de todas as pessoas.
Nem a sociedade, nem o poder público e nem a escola entenderam (ou quiseram entender) esse projeto de homem novo e sociedade nova que comporta a cultura da diversidade . Na verdade, a escola anda mais preocupada em selecionar alunos do que em educá-los, justamente o que o sistema social e o poder público exigem que ela faça. É uma escola centrada nos “princípios da caridade” e não nos direitos que os alunos têm como pessoas. Penso que teríamos que exigir que um bem público tão caro como a escola seja reconduzido para que o epicentro da educação seja as pessoas com deficiência, e não o contrário. A escola e seus profissionais têm que saber criar situações de aprendizagem nas quais as pessoas com deficiência adquiram a cultura, apesar de suas condições cognitivas.
Esse movimento da cultura da diversidade não supõe meramente uma mudança estrutural nas instituições, mas requer uma mudança profunda no ideológico-político, nos sistemas de gestão administrativa, nos conceitos psicológicos, nos princípios e sistemas educativos e nas relações de comunicação entre as pessoas. Partindo deste último ponto de vista, é simplesmente uma alternativa educativa aos modelos existentes.
As considerações anteriores fazem sentido quando deixam de ser princípios filosóficos e se traduzem em componentes da vida real. Explico: a teoria de uma nova educação em e para a diversidade exige dos profissionais uma prática educativa em e para a diversidade. O que eu falo não é uma aspiração ou uma ilusão minha, mas a tradução exata de estarmos convencidos (e eu estou) de que a escola é agente de transformação social e não mera reprodução do sistema. Refiro-me, é claro, a uma escola sem exclusões.
O pensamento da educação intercultural supera os prejuízos e contempla a diferença como um valor, sobre as análises ideológicas e socioeconômicas que devem moldar as relações entre as diversas culturas que chegam à escola. Como diz Pérez Gómez, “a escola é um cruzamento de culturas”. Esta mensagem significa que, se a escola está decidida a dar uma resposta a todas as crianças que a ela chegam, não pode fazê-lo partindo de concepções ou de prejuízos patológicos e perversos sobre a diversidade , mas sim a partir da consideração de que ser diferente é um elemento de valor e um referencial positivo para modificar a escola. “Não faz falta rotular as pessoas para proporcionar ensinos diferentes a alunos diferentes. Que não se vejam os problemas de aprendizagem como fracassos e sim como uma ocasião de alcançar-se um ensino mais avançado.” (Wang, 1994, p.39)
Tudo isso nos permitirá que as crianças adquiram uma cultura diferente, ao viver as diferenças entre as pessoas como algo valioso, solidário e democrático. Da diversidade cultural, étnica, de gênero, lingüística etc. surgirão necessidades educativas diferentes mas muito valiosas que teremos de contextualizar, sequencializar, temporalizar e buscar estratégias metodológicas para o seu desenvolvimento. A partir da consideração do currículo como processo aberto flexível e da aposta por uma escola que se adapta às diferenças (e não de diferenças que se adaptam à escola), estamos considerando a escola como agente de transformação social.
A idéia que pretendo ressaltar neste texto é que com a educação intercultural não estamos solicitando ocasiões isoladas para a aprendizagem das pessoas com deficiências (isso que alguns conhecem muito bem como “adaptações curriculares individuais”), de uma subcultura ou de algumas aprendizagens de segunda categoria, mas uma educação alternativa que, compreendendo a diversidade das pessoas e partindo das diferentes formas e ritmos de aprendizagem dessas pessoas, leve aos educadores a considerar todos esses indicadores como elementos potenciais de valor para mudar nosso pensamento pedagógico.
A passagem para a integração social e escolar das pessoas com deficiência é um discurso “progressista” e está dentro da ideologia da igualdade. Não consiste apenas em ter as mesmas oportunidades, mas também cabe à cultura escolar o direito como pessoa de poder aceder a melhores condições. A perspectiva intercultural supõe uma reconceitualização do valor da diversidade sob os princípios da igualdade, justiça e liberdade, a fim de que se estabeleça um compromisso permanente com as culturas minoritárias. O realmente importante não tem raiz no desenvolvimento do princípio de igualdade mas, sim, no princípio de liberdade. Ou seja, não se trata apenas de reconhecer que essas pessoas têm direitos, mas também elas têm que ter a liberdade para desenvolvê-los. Não falamos em termos de caridade e sim de direitos. Isso tudo nos deve servir de base a reflexões mais profundas – ao menos eu as faço – ao considerar a cultura da diversidade como processo de mudança de papéis e funções dos componentes que constituem a sociedade do final do século XX.
A escola compreensiva que aspira a assumir a diversidade de forma integradora é, a meu ver, o gérmen do que há de constituir uma sociedade democrática, pluralista e socializante na Espanha. Em uma sociedade pluralista se aceitarão as diferenças e as heterogeneidades das pessoas como potencial para que a sociedade avance e chegue a ser eticamente madura . A cultura da diversidade, como potencial de transformação, penetra no mais profundo da educação (a moral, o mundo dos valores…) e não na parte puramente estrutural. Daí que se há de produzir uma tomada radical de consciência (não dogmática) nos dirigentes e no professorado, que permita uma mudança profunda em sua gestão e em seu pensamento pedagógico.
Em síntese, podemos dizer que a educação intercultural deve ser uma educação que conduza à autonomia moral, intelectual e social e não à dependência , tal como descrevemos no seguinte esquema:
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL
AUTONOMIA DEPENDÊNCIA
Competência, educabilidade Incapacidade, deficiência
Inteligência dos processos lógicos Inteligência como capacidade
Conhecimento amplo Conhecimento específico
Elasticidade mental Rigidez mental
Aprendizagem significativa e relevante Aprendizagem mecânica
Aprender a aprender, qualidade Quantidade
Aprendizagem intencional e provocada Aprendizagem espontânea
Heterogeneidade Homogeneidade
Esquemas de ação conjunta Esquemas individuais

2. Diversidade e cultura: uma ocasião para ensinar a aprender o uma ocasião para aprender a ensinar? Eis a questão…

A vida nas aulas é uma continuação da vida acelerada da sociedade da pós-modernidade, onde os patrões do stress e da aceleração estão impedindo que nossos filhos tenham a oportunidade de recriar a cultura. Como diz Steinhause, ” o propósito fundamental da educação, como atividade planejada, deveria ser introduzir os estudantes na cultura, de tal forma que assim possam incrementar a sua individualidade e a sua criatividade pessoais”. A escola, como promotora de mudança, teria que dar às pessoas a oportunidade de entrar no mundo da cultura.

Minha opinião pessoal é de que a educação válida que a escola oferece deve ser aquela que possibilite à criança o conhecimento, a compreensão e o respeito das diversas culturas da sociedade em que vive. Esta é, precisamente, a diretriz da escola espanhola dos anos 90 e de seus profissionais: a de ser capazes de desenvolver um modelo educativo que proporcione a cada criança a ajuda pedagógica necessária a suas condições pessoais, experienciais e socioculturais. Já que a diversidade dos alunos é algo inerente ao desenvolvimento humano, a educação escolar terá que assegurar um equilíbrio entre a acessibilidade do currículo e a inegável diversidade dos alunos.
Em uma escola sem exclusões sabe-se, desde o princípio, que as pessoas que chegam a ela têm diferenças cognitivas, afetivas e/ou sociais, de gênero, étnicas, culturais etc. Por isso, há que elaborar-se o projeto educativo central pensando-se nessas diferenças e não em crianças hipotéticas. Ou seja, é necessário que se elabore um Projeto Educativo Compreensivo, Único e Diverso, cujo epicentro seja a diversidade e não a normalidade.
A partir desta perspectiva, cabe perguntar-se: queremos fazer um currículo possível para todos, inclusive para aquelas pessoas consideradas socialmente com déficit intelectual? Ou, dito de uma outra forma, quem pode ser considerado sujeito com necessidades educativas específicas em uma sociedade da diversidade? Quais são os conteúdos culturais que a escola tem que ensinar? Que mudanças devem acontecer na organização escolar? Que mudanças no estilo de ensinar e no trabalho cooperativo entre os profissionais têm que acontecer para que se alcance um ensino de qualidade? Quanto nos comprometeremos para chegar a isso? Quando nos comprometeremos? Que sentido tem a avaliação para a escola da diversidade e como se entenderá o progresso das crianças?
Responder a todas essas perguntas é muito difícil. Partindo da minha experiência, proponho alguns caminhos para começar mudanças significativas na escola atual, como passos prévios para a construção de uma escola sem excluídos.
Passo Um: um currículo compreensivo, único e diverso.
Uma dos primeiros passos para isso está, a meu ver, em partir de um currículo alternativo, não carregado academicamente – um currículo que permita a TODOS(AS) os alunos construir mecanismos e estratégias para familiarizar-se com o conhecimento, e que este conhecimento adquirido lhes sirva para resolver problemas da vida cotidiana. Um currículo, portanto, mais centrado na resolução de problemas reais e próximos à criança (próximo aos alunos e de grande interesse e relevância para eles – o próximo é aquilo que está ao alcance da mão) do que nas disciplinas, e que essas disciplinas sejam utilizadas como apoio para a resolução daqueles problemas.

Assim, o primeiro objetivo de um currículo cognitivo é ensinar aos alunos processos e estratégias de raciocínio efetivo que possam utilizar na aprendizagem e na resolução de problemas. Ou seja, a cultura escolar tem que tornar possível que as crianças sejam pessoas competentes para criar seus próprios processos estratégias de raciocínio (autoaprendizagem). A criança tem que ser o cientista na escola, e o profissional, o mediador do saber, aquele que cria um cenário para buscar onde se encontra esse saber.
É certo que existe uma grande variedade nas maneiras e nos ritmos de aprendizagem das pessoas quando se trata de organizar, reter, controlar e gerar o conhecimento. Também é certo que este conhecimento é mediado pela experiência pessoal e pelo mundo de significados onde as pessoas vivem e se desenvolvem. Mas o fato de que os profissionais saibam de tudo isso não deve ser uma ocasião para ressaltar as deficiências de algumas pessoas e sim uma ocasião para buscar novos modelos de ensinar. É uma ocasião para melhorar a prática educativa. Entendido como eu explico, significa que um “problema” (uma pessoa diferente) converte-se no epicentro do projeto educativo, já que o profissional vai encontrar nessa pessoa uma oportunidade única para mudar e melhorar seu estilo e modelo de ensino.
Todas as pessoas podem ser educadas e o currículo deve saber estabelecer ligações cognitivas entre as diferenças das pessoas e as suas possibilidades para adquirir a cultura. Sempre e quando considerarmos a escola como lugar onde se descobre o conhecimento e onde se ensina a pensar, ela tem que oferecer um currículo que rompa com o determinismo psico-biológico das diferenças na aprendizagem como algo eterno e imperecível, e o contemple como algo suscetível de modificação. Mais ainda, a partir do ponto de vista científico, as pessoas que oferecem dificuldades para aprender são uma força motriz muito mais poderosa para a ciência didática do que aquelas consideradas “normais”.
Assumir essa postura intercultural supõe um compromisso radical, socialmente falando, e um currículo compreensivo, com intervenções educativas centradas em estratégias de aproximação entre os coletivos diferentes, que estimulem o conhecimento e promovam o diálogo e o raciocínio.Por isso, o discurso intercultural em relação ao currículo há de penetrar no mais profundo (na educação moral) , e não ficar somente em uma atitude de contemplação sobre a diversidade durante alguns dias, semanas ou meses. Refiro-me à prática tão habitual em nossas escolas declarando ” o dia da mulher”, “o dia da paz” ou “o dia do deficiente” ( ou como “o dia do Domund” 1), mas que não penetra de maneira permanente na oferta curricular a não ser como algo acrescentado. Todos os dias do anos são dias da mulher, dias da paz, dias das pessoas com deficiências etc.
É no Projeto Educativo de Centro onde se hão de explicar as necessidades educativas específicas, as necessárias diversificações curriculares, a proposta de provisionamento de recursos e a maneira concreta de reprofissionalizar o professorado. O centro escolar, quando dotado dos recursos materiais e humanos necessários para desenvolver o seu projeto educativo (oferta educativa), é o espaço de onde devem vir as respostas à diversidade de alunos que chegam a ele. Um projeto educativo é o mais bondoso, pedagogicamente falando, quando elaborado pensando e partindo-se (contemplando) a heterogeneidade e não a homogeneidade.
Nós consideramos as diversificações curriculares como mecanismos do sistema escolar necessários à adequação dos processos de ensino-aprendizagem às características diferenciais dos alunos e, como não, uma espécie de “receitas” elaboradas a priori, que devem surgir da avaliação de todo o processo e da reflexão de todos os profissionais do centro. Essas adequações curriculares virão determinadas pelas circunstâncias em que se encontra cada criança em particular, mas visto a partir do Projeto Educativo e derivando deste (e não ao contrário) (Lopes Melero, 1994)
Educar na diversidade não se baseia, como pensam alguns, na adoção de medidas excepcionais para as pessoas com necessidades educativas específicas, mas na adoção de um modelo de currículo que facilite a aprendizagem de todos os alunos em sua diversidade. Se isso não é entendido adequada e corretamente, corre-se o risco de confundir “adaptação da diversidade” (que supera a deficiência) com “adaptação à desigualdade” (que ressalta a deficiência).
Passo dois: : a necessária reprofissionalização dos educadores – da reflexão à emancipação
A questão a resolver não é somente se as pessoas com algum tipo de deficiência são competentes “para aprender”, mas se nós, como educadores, somos competentes para “ensinar a aprender”. Ou seja, sabemos ensinar a aprender aos profissionais nesta escola da diversidade? Ou, dito de uma outra maneira: a situação atual do sistema educativo espanhol,no âmbito concreto da escola da diversidade, está, como acabo de descobrir, demandando uma Didática e professores de qualidade. Nós dispomos dessa Didática e desses professores? Eis a questão…

A educação em e para a diversidade precisa de professores que saibam criar ambientes para ensinar a aprender. De profissionais qualificados que saibam diagnosticar a situação de aula, o ritmo e as maneiras de aprendizagem de cada aluno, as características do processo de aprendizagem, conhecimentos de do desenho e do plano de ensino; que saibam trabalhar simultaneamente com diferentes situações de aprendizagem em um mesmo espaço para alcançar o que se pretende e que, ao mesmo tempo, saibam incorporar as demandas sociais das pessoas culturalmente diferentes e de seus familiares, sem esquecer que no ambiente de aula há que se procurar o equilíbrio entre a compreensibilidade do currículo e a atenção às diferenças individuais. Isso tudo exige uma série de competências profissionais que lhes permitam saber conjugar os conhecimentos com as atitudes, no intuito de que se consiga uma intervenção autônoma e eficiente em aula. Quer dizer, precisa-se de um profissional competente que saiba organizar e dar vida aos centros educativos.

A escola da diversidade requer um aperfeiçoamento permanente do professorado se quisermos ter êxito nas mudanças fundamentais da educação intercultural. Às vezes, a mudança educativa pode vir imposta pela administração, mas o aperfeiçoamento profissional é algo inerente ao próprio profissional. Sente-se essa formação como algo necessário, e a forma de consegui-la é muito variada e compreende seminários, oficinas, cursos com peritos etc. É necessário que essa formação seja planificada de um modo regular, inclusive naqueles casos em que os profissionais pensem que já adquiriram um grau de aperfeiçoamento que já não requer mais essa formação contínua. O projeto da escola da diversidade precisa de aperfeiçoamento contínuo, compartilhado entre os profissionais da escola e da universidade.

No entanto, o desenvolvimento profissional pode fazer com que os professores passem a conhecer melhor a si mesmos e se tornem mais seguros através da autorreflexão e da autoavaliação. São profissionais que desenvolvem uma autoconciência e uma autoconfiança que lhes permitem fomentar a sua autoestima profissional . John ELLIOT (1986) distingue entre o desenvolvimento profissional “até a maestria” e o desenvolvimento profissional “além da maestria”. O primeiro pode simplesmente reproduzir e manter a prática educativa tradicional que um dia recebeu da universidade, enquanto que o segundo depende, principalmente, da capacidade de autoavaliação deliberada necessária no profissional. A integração escolar implica em um desenvolvimento dos professores que vai muito além do meramente instrutivo, e que chega à avaliação de estratégias, técnicas e procedimentos deliberados para todos os alunos.

Os sistemas segregacionistas fracassaram e o trabalho dos especialistas com funções segregadoras também. Temos sido durante muitos anos profissionais da deficiência, alguns, inclusive, investigadores da deficiência, e nos dedicamos a julgar as pessoas com deficiência pelas suas respostas a alguns testes, ressaltando suas incapacidades e focalizando o seu currículo para essas incapacidades. A educação da diversidade exige mudar os referenciais nos componentes cognitivos das pessoas com deficiência, analisando os processos de aprendizagem em desenvolvimento. Ao contrário das medidas estáticas (que só revelam o que uma pessoa pode realizar – inteligência estática), a nós interessa o que uma pessoa pode realizar com a ajuda de um adulto ou de alguém com a mesma idade. E nos interessa por que enfatiza habilidades e estratégias que estão em processo de desenvolvimento (inteligência dinâmica), e um ensino cooperativo e de qualidade vai permitir-lhe criar mecanismos pessoais para a resolução dos problemas. Nessa troca de protagonistas, o aluno é o autêntico cientista e o reconstrutor do seu próprio conhecimento, e o profissional, o artista que sabe criar ambientes múltiplos de aprendizagem. (Lopez Melero, 1994)
Passo três: a interação e a heterogeneidade como nova estrutura organizadora

Educar em e para a diversidade não quer dizer que os alunos tenham que trabalhar sozinhos ou que o ensino não tenha que ser estruturado. Não devemos entendê-la como uma educação aberta no sentido que lhe dá Peterson, P.L. (1979), mas sim, como diz Tonucci, F (1993, p-26) que a aula se converta“ no lugar dos pontos de vista distintos”. É um lugar onde se aproveita a diversidade, e a aprendizagem se converte em uma atividade prazeirosa. É uma atividade de contrastes de pareceres e contradições, onde a diversidade dos alunos rompe o acordo preestabelecido entre a aprendizagem “normalizada”, e se necessita buscar novos modelos de ensino-aprendizagem para reestabelecer o equilíbrio educativo em classe.
Essa nova concepção da escola da diversidade precisa de um modo diferente de trabalhar em aula. Entre adultos e crianças da mesma idade hão de se criar ou elaborar plataformas de entendimento (“formatos de interação” Bruner, 1988), que são como que a primeira oportunidade de cultura das crianças. Mais tarde, e se essas experiências entre as crianças da mesma idade acontecem, nos referimos a esquemas de ação conjunta onde a criança aprenda a realizar , a princípio, as atividades mais fáceis, e o adulto, as mais complexas, tudo isso para ir dando-lhes, pouco a pouco, tarefas de maior responsabilidade.
Esse enfoque socioconstrutivista que ressalta a importância da interação professor-aluno foi estudado por Werstch (1988), que afirma que, quando o adulto e a criança iniciam uma tarefa comum, cada um parte de uma definição diferente da situação de aprendizagem e, para que se consiga alcançar essa aprendizagem, é necessário que as situações se aproximem o mais possível em uma mesma rede de significados. O que o profissional da escola da diversidade tem que garantir não é a verdade absoluta encarnada em sua pessoa, mas a busca de estratégias para ir resolvendo problemas próximos. Ou seja, ele garante um método de investigação e indagação, e não o saber-tudo.
Esses processos de mediação são especialmente importantes quando se trabalha com pessoas com necessidades educativas específicas, precisamente por que necessitam de mais processos de “andaimagem” que os seus colegas. Os profissionais da escola da diversidade, quando organizam suas aulas, tomam decisões reflexiva ou irreflexivamente, mas sempre com a intenção da aprendizagem e estabelecendo uma forma diferente de organizar o espaço de maneira a que o contraste de opiniões e o trabalho solidário e cooperativo permita romper como afã competitivo e individualista das nossas escolas.
O trabalho cooperativo e solidário na escola é um modo de atingir a metacompreensão nas pessoas com necessidades educativas especifícas , através dos colegas. Os colegas são um apoio didático permanente. É precisamente o contraste das opiniões entre as crianças e a interação entre colegas da mesma turma (contrariamente aos que pensam que é melhor que as crianças aprendam em situação particular/pessoal – segregação) que as leva a enfrentar os seus próprios erros. O erro é considerado como elemento de valor para seguir redescobrindo conjuntamente o conhecimento. Essa maneira de educação sempre produz na criança o desejo de saber (“a emoção de conhecer”).
Nas turmas heterogêneas, as diferenças entre os alunos são consideradas por professores, pais e alunos como algo normal, não como algo excepcional. Como assinalamos desde o início, todos sabem como e quais são os seus comportamentos. Por isso, se planeja em função dessa diversidade.
O ensino interativo no grupo de trabalho heterogêneo é a nova estrutura organizacional necessária em uma escola em e para a diversidade. O currículo e a classe são organizados de tal maneira que as crianças ajudem umas às outras e, mesmo que eles sejam um suporte importante, o professor será sempre o principal apoio para todas as crianças.

Passo quatro: um novo estilo de ensinar. O trabalho solidário e cooperativo entre os profissionais.

Esta definição levará a um desenvolvimento coordenado da ação educativa, buscando essa mesma sintonia de ação nas diferentes experiências no colégio, tais como a convivência em situação de co-educação, as experiências de integração de pessoas com necessidades educativas específicas ou as experiências de intercâmbio permanente com o meio. Essa maturidade ética da escola dos anos 90 é a que há de propiciar o clima onde a criança vai receber o máximo de experiências enriquecedoras.

O profissionalismo dos docentes tem uma dimensão coletiva ( corpo docente), como em qualquer outra profissão. Entendemos como “equipes docentes” aquelas ações ou acordos que acontecem de maneira formal ou informal entre vários professores para compartilhar alunos e recursos didáticos que sejam necessários para desenvolver o currículo.

A integração e o trabalho solidário e cooperativo necessitam de profissionais que tenham autonomia para desenvolver a sua profissão. Essa é a linguagem dos profissionais da escola da diversidade. Quando esses profissionais trabalham com alunos com necessidades educativas específicas de forma solidária e cooperativa, possibilitam uma melhora substancial na aceitação mútua e no rendimento escolar de todos os alunos (Johson e Johson, 1986).
Passo cinco: a participação da família e da comunidade como recurso e apoio no processo da educação intercultural.
As pessoas com deficiência não têm muitas possibilidades de escolher de acordo com os seus próprios desejos, devido à rotina institucional fomentada na família e na escola, e aos programas assistenciais e pouco educativos a que são submetidas.

A partir do momento em que se anuncia aos pais que o seu filho tem uma deficiência, estabelecem-se, de modo inconsciente, dois modelos de educação que guardam estreita relação com os dois modelos que descrevemos anteriormente, que são: o modelo deficitário e o modelo competencial. E os pais, guiados pelos especialistas médicos, psicólogos e pedagogos, partem do princípio que o seu filho normal vai ter uma educação diferente em finalidades, procedimentos e conteúdos do que vai ter o seu filho com deficiência. E o fazem com toda a naturalidade, dando lugar a dois tipos de educação na mesma família: os filhos que aprendem e os filhos que não aprendem. O primeiro modelo é culturalmente mais rico do que o segundo: no primeiro se tende a educar, enquanto que no segundo se conduz a uma vida de terapia permanente.
Esse mesmo modo de pensar se translada à escola sem nenhuma reflexão, e os professores traduzem que há crianças que aprendem e crianças que não aprendem. Isso origina uma dualidade curricular: um currículo da cultura e um currículo da subcultura.
A sociedade que aprende um pouco de cada dos contextos anteriores recebe em seu seio as pessoas com deficiência, diferenciando ambos os modelos e traduzindo que há pessoas socialmente úteis e outras socialmente inúteis. E, em conseqüência, estabelece o mundo do trabalho, do ócio e do tempo livre, da economia, do tipo de relações etc., construindo duas estruturas sociais completamente diferentes.
As circunstâncias históricas nas quais nos movemos na Espanha requerem um esforço coletivo em busca de procedimentos alternativos de investigação, que possam dar conta de todos os problemas que se produzem em uma situação de integração. Se se quer uma busca qualitativa, é necessário que os serviços de apoio à escola adotem/assumam um conjunto de valores comuns. Também que estabeleçam acordos para valorizar e priorizar os objetivos, e que a via de entendimento seja consenso entre eles e os demais profissionais. Por que, definitivamente, se está projetando no meio social um modo de entender a escola como um serviço à coletividade.
Quero acentuar esta idéia de serviços à comunidade por que a educação não é um problema que afete exclusivamente a instituição escolar, mas que compromete toda a sociedade. É daqui que se deve responder aos problemas locais, não apenas os específicos do âmbito escolar, mas sim aos problemas de toda a população. Serão, portanto, serviços de apoio interdisciplinares, onde se unem as áreas pedagógica, psicológica, social e médica. É através desses quatro âmbitos de atuação que os serviços de apoio locais têm que definir suas competências, por meio de um organismo único, no caso de que essas funções correspondam ao Conselho Municipal de Educação.
E para que tudo isso?
3. Uma escola sem exclusões: da qualidade do ensino à qualidade de vida para todos.

Se existe uma palavra que hoje está em moda no discurso que introduz a cultura da diversidade é, sem dúvida, a palavra “qualidade”. Seria um paradoxo falar de diversidade e não falar de qualidade. Desde as declarações dos organismos internacionais até os bate-papos em ruas e bares, passando por manifestações de autoridades, encontros de professores, centrais sindicais, associações de pais e de alunos, empresários e especialistas, todos convergem em aceitar a qualidade da educação e a qualidade de vida como objetivos prioritários neste final de século XX. Mesmo que o conceito de qualidade de vida seja um conceito evasivo (Taylor, S. e Bogdan, R., 1990), o certo é que é utilizado em muitos campos e lugares e é amplamente conhecido. No entanto, há autores que estabelecem que falar de qualidade de vida já delineia um problema (Holm, P. e outros, 1991), já que todos pensamos na mesma coisa ao falar em qualidade de vida.

Neste sentido, Landesman (1996), reconhece que todos os problemas conceituais existentes em torno da expressão “qualidade de vida” originam uma grande dificuldade na hora em que se tenta avaliar em que consiste a qualidade de vida para as pessoas com deficiência. Apesar dessas dificuldades, ele quis obter respostas a perguntas importantes, tais como “o que significa a qualidade de vida?”, “que idéias abarca esse conceito?”, “como podem ser definidos funcionalmente os conceitos de qualidade de vida e de satisfação pessoal na vida?”, que conjunto de variáveis ambientais são as que tem a maior probabilidade de intensificar a qualidade de vida, levando em conta os diferentes tipos de pessoas e as diferentes etapas da vida?”
Esses e outros questionamentos também foram feitos por outros autores, entre os quais mencionarei Schalock (1990), tentando conceitualizar o que se deve entender por qualidade de vida de pessoas deficientes (ou com “descapacidades” de desenvolvimento, como costuma denominar esse autor).
Em nosso ponto de vista, em todos esses questionamentos se traça o problema (leia-se a expressão qualidade de vida) pensando que a pessoa com deficiência não tem autonomia para poder escolher entre as possibilidades que a vida lhe oferece e que ela tem que construir. Essas pessoas são sempre definidas segundo o padrão deficitário, já descrito, e não segundo o padrão competencial. Ou seja, a partir das impossibilidades – e não das possibilidades que a vida oferece ou das oportunidades que se lhe possa dar para que viva a sua própria vida.
Compartilhamos da opinião de Holst e outros (1991), quando dizem que corremos um grande perigo se introduzirmos no mundo das pessoas com deficiência uma nova expressão, como é o caso de “qualidade de vida”, e não se dá a essa expressão uma explicação adequada à cultura de cada país.

Suponhamos que uma definição de qualidade de vida possa ser aquela a que nos referíamos anteriormente – aquela pela qual uma pessoa aproveita as oportunidades que a vida lhe dá para levar uma vida digna. ( O conceito de dignidade é o de reconhecer que as pessoas com deficiência tem direitos como todas as pessoas). Agora, há que se delimitar quais são essas oportunidades, por que umas serão externas e outras a própria pessoa irá construir, sempre e quando se lhe dê chance de fazê-lo. Poderíamos, então, afirmar que o conceito de qualidade de vida é algo dinâmico, algo que construímos e, para isso, precisamos ter competência cognitiva e cultural. A qualidade de vida é um conceito dinâmico e complexo, no qual as condições de vida são diferentes de uma pessoa para outra (estilo de vida).
Não existem duas pessoas que tenham e nem aproveitem da mesma maneira as oportunidades da vida, pelo fato de haverem recebido dotações genéticas diferentes, ou por terem mais ou menos sorte, por terem ou não recebido herança. As atitudes tomadas no decorrer da vida tampouco permanecem estáticas – nem os valores, nem os interesses (alguns podem desaparecer, outros novos podem surgir).
Os questionamentos filosóficos sobre a qualidade de vida traduzir-se-ão em componentes reais da qualidade de vida de pessoas com deficiência (Goode, 1992; Hegarty, 1991 e Matikkal, 1994), tais como delimitar quem é a pessoa com deficiência – quem é física, psicológica ou espiritualmente deficiente. Ou seja, o Ser como componente de qualidade de vida está relacionado com os aspectos básicos como pessoa. Por exemplo: o ser físico se refere ao bem estar físico do ser humano. O ser psicológico faz referência à acomodação e à autoestima. E o ser espiritual relaciona-se mais com o mundo dos valores e com as crenças ou concepções do mundo dos homens, sejam elas religiosas ou não.
Também podemos falar de outro componente da qualidade de vida partindo-se do âmbito de pertencer ou não a uma comunidade e o papel que se desempenha nessa comunidade. Nesse aspecto, temos que distinguir alguns subcomponentes, tais como o de pertencer fisicamente a uma comunidade ou vizinhança. O pertencer socialmente é um passo a mais e se refere aos laços que se estabelecem ou se dão nessa comunidade. Estabelecer esses subcomponentes seria de competência da comunidade, que já viria determinada pelo acesso e pela responsabilidade dentro da comunidade.
Por último, dentro dessa estrutura de componentes de qualidade de vida, também falaremos de como chegar a “ser”. Esse componente faz referência às atitudes que todos tomamos para alcançar nossos objetivos, nossas aspirações. Aqui se inclui todo o tipo de lazer e de recreação.Neste âmbito, os subcomponentes seriam as atividades práticas de cada pessoa na vida cotidiana, tanto dentro quanto fora de casa. isto é, todas as atividades de lazer e de tempo livre que servem para que descansemos e relaxemos e também aquelas atividades de crescimento e desenvolvimento pessoal que nos permitem adquirir informações e aprendizagem social e pessoal.

Em resumo, pode-se dizer que a qualidade de vida pode oferecer às pessoas – deficientes ou não – a oportunidade de escolha, de ter coisas importantes para fazer, de ganhar a própria vida, de viver em um lugar agradável, de ter amigos e gente com quem compartilhar idéias, desejos e interesses, ter oportunidade de desfrutar o tempo livre e de passar bons momentos com os amigos e usufruir de momentos felizes. E a melhor maneira de proporcionar isso às pessoas com deficiência é sabendo escutá-las, para que elas possam nos dizer que desejam o mesmo que todo o mundo, como diz Goode: “as pessoas com descapacidades de desenvolvimento querem a mesma coisa que todos queremos, querem o apoio da família e do meio em que estão inseridas para conseguir os seus objetivos, e querem valorizar por si mesmas tudo o que proporciona qualidade de vida”. Durante muito tempo, as pessoas com deficiência tiveram outras que falaram por elas – deixemos agora que eles falem por si mesmos, que falem dos seus próprios interesses, gostos e desejos.
Todas essas afirmativas devem ser consideradas como princípios básicos na política a seguir com as pessoas com deficiência , e não como metas a ser alcançadas. Não se pode permanecer sempre no terreno da especulação e da teoria, e sim partir para a prática, por que o que há em jogo, em meu ponto de vista, é a construção de novos valores sociais para o século XXI. Esse é o grande salto ideológico, o de passar do princípio de reconhecimento da igualdade ao princípio de colocá-lo em uso com novas leis e normas sociais de liberdade.
Por tudo isso, queremos estabelecer aqui que a expressão qualidade de vida tem que abrir espaços de reflexão, de autocrítica permanente a partir de um ponto de vista epistemológico, ideológico e ético, desde o ponto de vista da qualidade das relações nos contextos familiar, escolar e social e, por último, desde o ponto de vista político e de gestão. Por isso, é importante deixar claro o que todos entendemos por qualidade de vida, não apenas das pessoas com deficiência mas em todo o contexto social. É uma definição em termos de processo e de evolução dos princípios e dos valores sociais que vamos construir para os anos futuros e não de conservação dos valores caducos de bem estar individual.
O questionamento que desejo deixar neste escrito da revista Kikirikí é o seguinte: nós estamos preparados ideológica e cientificamente para estudar os processos pelo quais as pessoas as pessoas com deficiência irão passar da situação de normalização à situação da qualidade de vida? Ou, dito de outro modo, a normalização em nossas escolas é garantia de qualidade de vida ? Quais são os critérios que podem ser considerados como de qualidade para todas as pessoas e em todas as culturas? Quem estabelece esses critérios?
Alguns autores pensamos que a qualidade de vida não é algo que simplesmente se tem ou se recebe, mas algo que, de forma ativa, as pessoas criam por si próprias, dentro de diversos contextos e com as condições adequadas. Levar uma vida boa supõe ter a oportunidade de conduzir a própria vida de forma autônoma, de acordo com os próprios interesses, desejos e necessidades. É, simplesmente, ter uma vida digna.

Qualidade de vida e saúde

Quando se fala em qualidade de vida é obrigatório que se analisem quais são as atuais condições de saúde na vida das pessoas com deficiência. Essa situação de saúde tem que ser a mesma que a das pessoas normais , procurando um estado permanente de saúde e estabelecendo todos os mecanismos institucionais para que, em momentos críticos, possa-se recuperar esse “estado de saúde”.

Essa nova concepção de uma saúde de qualidade para todos, a partir de um ponto de vista de custo-benefício, é mais rentável socialmente, já que não se “terapeutiza” a vida das pessoas com deficiência, se melhora as instituições de saúde e, por outro lado, se consegue algo muito mais importante do ponto de vista pessoal: melhora-se a qualidade de vida das pessoas com deficiência ao melhorar as relações humanas, reconhecendo a elas o mesmo direito das outras pessoas.
Qualidade de vida e mundo de relações das pessoas com deficiência

A educação em situação segregadora que as pessoas com deficiência tem recebido está sempre focalizada na dependência e não na autonomia. Sua personalidade e sua identidade são sempre identidades colonizadas.

A sociedade que aprende dos conceitos anteriores recebe em seu seio as pessoas com deficiências, diferenciando ambos os modelos, e traduz que há pessoas úteis e outras inúteis socialmente. Em conseqüência, estabelece o mundo do trabalho, do lazer e do tempo livre, da economia, do tipo de relações etc., construindo duas estruturas sociais absolutamente diferentes.
Como salvar esse mundo dialético para evitar que realmente se produza qualidade de vida? Com essa pergunta entramos no quadro seguinte, já que a resposta a essa pergunta é estritamente ética.
Ética e qualidade de vida

A maioria dos países está se preparando para o século XXI, para a etapa pós-industrial, com graves dificuldades sócio-econômicas. Ante essa repressão financeira, as instituições se vêem forçadas a mudar, mas o exemplo do passado nos mostra que essa mudança se produz de forma lenta e que, além disso, as modificações são muito mais de aparência do que de essência.
A nova era pós-industrial ou tecnológica necessitará de um novo sistema de educação e de valores. A rigidez de um sistema competitivo baseado nas credenciais de que “vales quanto produzes” dará lugar a um sistema flexível, onde se levará em conta cada indivíduo segundo sua identidade e originalidade, e se permitirá que cada qual progrida a seu ritmo. É a partir daqui que poderemos contar com uma educação – especial – para todos.
Essa nova etapa da educação intercultural implica em que a diversidade não seja considerada como defeito e sim como um valor. Um valor que supõe que as pessoas com deficiência sejam valorizadas como pessoas competentes para orientar a própria vida com autonomia, e não menos competentes para sentir a autonomia das demais pessoas. Esse reconhecimento de identidade pela diferença será (é) o início de uma nova axiologia, uma axiologia centrada na diversidade e não no valor marcado em quanto produzes como elemento de um sistema mas no quanto és como pessoa.
O discurso da diversidade e da qualidade de vida é um discurso preferencialmente ético. É um discurso que penetra no mais profundo do ser humano (na moral), uma outra maneira de entender o ser humano e, portanto, a sociedade.

Qualidade de vida e gestão política

É necessário que todos os países cooperem ativamente para essa mudança qualitativa por que, se não, corremos o risco que aponta F. Quere (1994), quando afirma “que a nossa sociedade, colhida na espiral do execrável infinito de suas realizações, muda de filosofia a seu capricho e interesse. E, do impossível, seu desejo se faz possível. Depois de possível, legítimo e imperativo, e esse imperativo se impõe com urgência.”

Uma questão surge imediatamente: o que se pode fazer? o que se deve fazer? O responder afirmativa ou negativamente comporta uma atitude determinada por parte da ciência e dos cientistas. Ou os cientistas se põem a serviço da qualidade de vida de todas as pessoas ou se põem a serviço do sistema do poder. Advogamos por:

– pela reorganização dos espaços sociais de acordo com a diversidade das pessoas (psíquica, física e sensorial) na construção e na ordenação dos edifícios, na acomodação e adaptação dos meios de comunicação e de transporte. Também por definir o âmbito de participação social na vida cotidiana (laboral, lazer e tempo livre) como o sentimento de auto-realização pessoal no seu direito de estabelecer relações de amizade duradouras e relações de casal, de autoestima e de segurança em si mesmas como elementos básicos da felicidade.

– em relação com o mundo da ciência, deve ser reconceitualizar o mundo da prática social e da prática investigadora: as pessoas com deficiência não são apenas objeto de estudo e de investigação , mas sujeito ativo de cultura. O saber e a prática científica têm que originar uma nova “volta copernicana”, que produzir uma nova significação científica intimamente ligada à incorporação dos novos coletivos até agora marginalizados (sexo, raça, deficiência… no mundo ocidental.

É esta nova cultura da diversidade que vai permitir mudar os valores normalmente constituídos e preparar uma nova axiologia e um novo modo de viver nossa própria vida, precisamente se somos capazes de projetar esse futuro imediato e mudar radicalmente de direção, oferecendo às pessoas com deficiência uma grande quantidade de coisas e de bem-estar.

Nós queremos distinguir entre o estado do bem-estar e qualidade de vida. Hoje se está introduzindo em todos os países um discurso que pode ser muito perigoso: referimo-nos a essa aura de felicidade que, dizem os políticos, gera o bem-estar. Bem-estar para quem? O conteúdo deste estado de bem estar está recheado de uma axiologia absolutamente econômica, própria do pensamento neoliberal, que produz unicamente uma deterioração no respeito à natureza e às relações entre os povos deste planeta, destacando como novos valores (exatamente o contrário a um valor) a competitividade, a não-solidariedade e a discriminação de raça, sexo e enfermidade entre as pessoas.
No entanto, a qualidade de vida é um discurso que nos introduz a uma nova axiologia e a um mundo de valores novos, onde as pessoas são respeitadas precisamente por serem pessoas, e não pelo lugar que ocupam na sociedade nem pelo seu nível de produção. O discurso da qualidade de vida é um discurso ético, já que a deficiência é considerada um valor e não um defeito. Nós destacamos o discurso da cultura da diversidade como qualidade de vida.
É um discurso que transcenderá a filosofia da normalização sempre e quando a sociedade seja eticamente madura para que todas as pessoas com deficiência tenham a mesma oportunidade de viver sua própria vida com dignidade, que o resto da humanidade, e tenham consciência de si mesmas e de sua responsabilidade pessoal e social como pessoas ativas em uma sociedade aberta à diversidade. Se quem está aqui está convencido disso, teremos conseguido algo tão simples e tão bonito como o possibilitar-lhes (possibilitar-nos) que se entusiasmem (nos entusiasmemos) com o desejo de viver sua (nossa) própria vida.
Talvez eu seja um dos últimos românticos e não tenha perdido ainda (e nem desejo faze-lo) a confiança na liberdade humana. Por isso, quero dizer-lhes que, aconteça o que acontecer, nosso discurso sobre a qualidade da educação (vida) é uma mensagem que transcende a própria filosofia da normalização, e penetra no mundo da ética e dessa nova axiologia que vai permitir-nos que ajudemos a criar uma Humanidade mais humana.
NOTA:
1 – Dia do Domund: feriado onde as crianças e jovens da Espanha saem para recolher donativos para os pobres do Terceiro Mundo – Dia Mundial das Missões